Futebol,
como todo esporte, educa. Isso é certo. Essa é a essência do jogo; e, a partir
dos 6 anos, já é possível formar times, estabelecer regras simples e deixar os
pequenos bem à vontade para aprender a lidar com diversas situações, desde
treinar a coordenação motora para amarrar a própria chuteira até aceitar o fato
de que não gostam de futebol. Sim, isso acontece com as crianças do nosso país.
"Não é porque o pai pendurou a chuteira no quarto da maternidade que o
filho vai ser apaixonado pelo esporte. Pelo contrário, cerca de 40% dos
estudantes apresentam muita resistência a entrar em campo", revela Marcos
Mourão, professor de educação física da Escola da Vila, em São Paulo. Então, o
que fazer com esses alunos e também com os tímidos ou desajeitados?
"Aceitá-los como são e incluí-los na brincadeira, que precisa de gente nos
bancos de reserva, na torcida, de um fotógrafo registrando a partida, de um
gandula. Muitas vezes, os pequenos começam a pegar gosto pelo jogo participando
de maneira indireta e fazendo todos os papéis, não só o de craque", diz o
professor.
E vale o
alerta para os pais fanáticos: mesmo que meninos ou meninas gostem muito de
jogar, a prática deve ser descompromissada de resultados e pressões até os 11
anos. Se a criança estiver em uma escolinha de futebol, é preciso se certificar
de que a carga de exercícios e movimentos repetidos não está passando da conta.
"Os brasileiros sempre foram famosos por aprender a jogar de forma
espontânea, e não na cartilha como fazem os europeus. Sempre ganhamos deles com
essa nossa ginga", afirma Mario Luiz Ferrari Nunes, líder do Grupo de Pesquisa
em Educação Física Escolar da Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo. Para ele, a preocupação precoce em formar atletas pode sobrecarregar a
criança, que não vai viver o lúdico, e sim ser privada da possibilidade de
desenvolver o improviso, a espontaneidade. "Curtir a beleza do drible, da
artimanha para vencer o adversário, pode ser mais divertido e valer tanto
quanto marcar o gol."
O campo, o
gol, a autoridade de um juiz criam o contorno para a disputa de 11 contra 11,
todos obedecendo às mesmas regras (sejam simplificadas ou mais complexas,
conforme o nível do aprendizado). Além de treinar os passes e a corrida, o que
favorece o crescimento, a criança exercita a relação com a autoridade do juiz,
a autonomia das jogadas, o respeito pelos outros jogadores. "Durante uma
partida informal, os aspectos emocional, físico e motor estão ativados ao mesmo
tempo, o que é muito rico", explica o professor Marcos. "Ansiedade,
inseguranças, questionamentos podem vir à tona e ser processados no jogo ou em
conversas com a turma. Isso inclui as questões éticas." Marcos dá um
exemplo: "O menino viu que o goleiro se machucou. Ele deve lançar a bola
ou pedir ao juiz para interromper a partida e só recomeçar quando todos
estiverem bem? O que cada um acha?"
É muito
comum que, dentro e fora de campo, as crianças e os adolescentes questionem as
regras, e aí o futebol dá outra oportunidade: a de formar cidadãos críticos.
"Quanto mais eles participam da construção das regras, quanto mais
questionam e entendem o porquê de o jogo ser como é, mais comprometidos ficam
em cumprir o combinado", diz Marcos. Isso também vale na hora de os pais
estabelecerem limites em casa. "É preciso explicar para que os filhos
compreendam que as negativas não são apenas autoritárias mas formas de ampliar
a liberdade e as possibilidades de ação. O goleiro não pode segurar a bola com
a mão, para não atrasar a partida. Essa é uma estratégia para que o jogo fique
ágil", argumenta. "O futebol ainda ensina as crianças a ser rápidas,
como o mundo em que vivemos."
Esse
ambiente circunscrito e os combinados são um treino para que as crianças e os
adolescentes aprendam como resolver as questões em grupo. "Aos 5 anos,
numa brincadeira, descobri que era boa de bola", diz Joana Reis, 16 anos,
aluna do 2º ano do ensino médio da Escola da Vila, onde joga futsal duas vezes
por semana.Ela tinha agilidade no jogo e foi pegando gosto. Aos 7, começou a
praticar futebol de salão e obteve muitas vitórias. "Sou meio de campo,
mas curto o processo todo, o drible, os passes, o ataque, o gol. E foi nessa
prática, trocando de lugar, que entendi a força do grupo. Preciso dos outros
para alcançar meus objetivos, não dá pra conseguir tudo sozinha", conta
ela.
Faz parte
aprender o valor de repetir uma, duas, dez vezes até dominar o lance e chegar a
uma boa jogada. É importante também cair e levantar, lidar com a dor e com a
agressividade (a própria e a dos outros), a frustração de ficar no banco ou de
ver o time perder. O campinho pode ser um bom lugar para viver intensamente
esse turbilhão de emoções, como um laboratório das experiências que virão,
quando será preciso enfrentar ambientes heterogêneos e competitivos, driblar as
adversidades e pôr a bola para frente todos os dias. "O esporte me ensinou
a sentir os lugares, a perceber as pessoas, os conflitos e a montar
estratégias, cumprir metas, transformar dificuldades em desafios", revela
o ex-jogador Raí, que atuou dos 18 aos 35 anos na seleção brasileira, no São
Paulo Futebol Clube e no Paris Saint-Germain, entre outros times. Ao pendurar
as chuteiras, há 16 anos, Raí criou a Fundação Gol de Letra, pela qual já
passaram 6 mil crianças e jovens. Os alunos são estimulados a praticar futebol
e outras atividades físicas, têm reforço na leitura, na escrita e nas
atividades culturais. "O futebol é instrumento de inclusão, uma forma
muito concreta de propor e conquistar metas, mas sem perder o caráter de
diversão. O jogo ajuda a 'amaciar' o mundo individualista, desenvolve
companheirismo, cooperação, cumplicidade, persistência", diz Raí.
Na infância
e na adolescência, esse corpo a corpo de treinos e partidas divertidas é um
potente antídoto contra o excesso de tecnologia, que a cada dia torna mais
crianças sedentárias. "O esporte ajuda a mudar isso, principalmente nas
grandes cidades. Os pais, porém, têm que sair da inércia e tirar os filhos do
tablet ou do videogame. Enquanto ficam quietos ali, não estão sendo preparados
para lidar com a vida e com as pessoas", afirma Raí, que tem três filhas.
Apenas a caçula, de 14 anos, joga futebol na escola.
Na vida do
educador Luiz César Madureira, o futebol é mais que um esporte, é um norte. De
família de classe média, ele aprendeu a respeitar as regras, a colocar seu
corpo em movimento e a lidar com frustrações batendo bola nos campinhos de
Ribeirão Pires, município da Grande São Paulo. Adolescente, foi jogar no time
profissional da cidade e treinou muito para vencer os obstáculos e cumprir
metas. Aos 18 anos, entrou na Faculdade de Educação Física e logo veio um
desafio maior: trabalhar com adolescentes de Eldorado, bairro de Diadema, uma
das regiões paulistanas mais populosas e violentas. "No primeiro dia,
depois de atravessar becos e vielas, cheguei à quadra, onde havia 30 crianças e
uma bola murcha. Eram meninos e meninas com todo tipo de trauma me olhando de
um jeito assustador. Foi um teste para ver se eu ia ficar ou se saía
correndo", lembra Madureira. "Resolvi colocar a bola para rolar e,
assim, derrubei todas as barreiras entre nós. Em alguns minutos, fazíamos parte
do mesmo jogo, estávamos em uma disputa entre iguais. Isso aconteceu há 13
anos, e continuo aqui", conta. Ele se tornou educador social e coordenador
de esportes da Associação de Apoio à Criança em Risco (Acer), que atende por
ano 2 mil crianças e jovens. "O futebol tem o poder de transformar pessoas
e torná-las mais fortes para enfrentar a vida. Comigo foi assim, e tenho provas
disso todos os dias. Jogando a gente se entende."