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sábado, 4 de julho de 2015

Questionar as regras do jogo é uma oportunidade de ajudar a formar cidadãos críticos.


Futebol, como todo esporte, educa. Isso é certo. Essa é a essência do jogo; e, a partir dos 6 anos, já é possível formar times, estabelecer regras simples e deixar os pequenos bem à vontade para aprender a lidar com diversas situações, desde treinar a coordenação motora para amarrar a própria chuteira até aceitar o fato de que não gostam de futebol. Sim, isso acontece com as crianças do nosso país. "Não é porque o pai pendurou a chuteira no quarto da maternidade que o filho vai ser apaixonado pelo esporte. Pelo contrário, cerca de 40% dos estudantes apresentam muita resistência a entrar em campo", revela Marcos Mourão, professor de educação física da Escola da Vila, em São Paulo. Então, o que fazer com esses alunos e também com os tímidos ou desajeitados? "Aceitá-los como são e incluí-los na brincadeira, que precisa de gente nos bancos de reserva, na torcida, de um fotógrafo registrando a partida, de um gandula. Muitas vezes, os pequenos começam a pegar gosto pelo jogo participando de maneira indireta e fazendo todos os papéis, não só o de craque", diz o professor.

E vale o alerta para os pais fanáticos: mesmo que meninos ou meninas gostem muito de jogar, a prática deve ser descompromissada de resultados e pressões até os 11 anos. Se a criança estiver em uma escolinha de futebol, é preciso se certificar de que a carga de exercícios e movimentos repetidos não está passando da conta. "Os brasileiros sempre foram famosos por aprender a jogar de forma espontânea, e não na cartilha como fazem os europeus. Sempre ganhamos deles com essa nossa ginga", afirma Mario Luiz Ferrari Nunes, líder do Grupo de Pesquisa em Educação Física Escolar da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Para ele, a preocupação precoce em formar atletas pode sobrecarregar a criança, que não vai viver o lúdico, e sim ser privada da possibilidade de desenvolver o improviso, a espontaneidade. "Curtir a beleza do drible, da artimanha para vencer o adversário, pode ser mais divertido e valer tanto quanto marcar o gol."

O campo, o gol, a autoridade de um juiz criam o contorno para a disputa de 11 contra 11, todos obedecendo às mesmas regras (sejam simplificadas ou mais complexas, conforme o nível do aprendizado). Além de treinar os passes e a corrida, o que favorece o crescimento, a criança exercita a relação com a autoridade do juiz, a autonomia das jogadas, o respeito pelos outros jogadores. "Durante uma partida informal, os aspectos emocional, físico e motor estão ativados ao mesmo tempo, o que é muito rico", explica o professor Marcos. "Ansiedade, inseguranças, questionamentos podem vir à tona e ser processados no jogo ou em conversas com a turma. Isso inclui as questões éticas." Marcos dá um exemplo: "O menino viu que o goleiro se machucou. Ele deve lançar a bola ou pedir ao juiz para interromper a partida e só recomeçar quando todos estiverem bem? O que cada um acha?"

É muito comum que, dentro e fora de campo, as crianças e os adolescentes questionem as regras, e aí o futebol dá outra oportunidade: a de formar cidadãos críticos. "Quanto mais eles participam da construção das regras, quanto mais questionam e entendem o porquê de o jogo ser como é, mais comprometidos ficam em cumprir o combinado", diz Marcos. Isso também vale na hora de os pais estabelecerem limites em casa. "É preciso explicar para que os filhos compreendam que as negativas não são apenas autoritárias mas formas de ampliar a liberdade e as possibilidades de ação. O goleiro não pode segurar a bola com a mão, para não atrasar a partida. Essa é uma estratégia para que o jogo fique ágil", argumenta. "O futebol ainda ensina as crianças a ser rápidas, como o mundo em que vivemos."

Esse ambiente circunscrito e os combinados são um treino para que as crianças e os adolescentes aprendam como resolver as questões em grupo. "Aos 5 anos, numa brincadeira, descobri que era boa de bola", diz Joana Reis, 16 anos, aluna do 2º ano do ensino médio da Escola da Vila, onde joga futsal duas vezes por semana.Ela tinha agilidade no jogo e foi pegando gosto. Aos 7, começou a praticar futebol de salão e obteve muitas vitórias. "Sou meio de campo, mas curto o processo todo, o drible, os passes, o ataque, o gol. E foi nessa prática, trocando de lugar, que entendi a força do grupo. Preciso dos outros para alcançar meus objetivos, não dá pra conseguir tudo sozinha", conta ela.

Faz parte aprender o valor de repetir uma, duas, dez vezes até dominar o lance e chegar a uma boa jogada. É importante também cair e levantar, lidar com a dor e com a agressividade (a própria e a dos outros), a frustração de ficar no banco ou de ver o time perder. O campinho pode ser um bom lugar para viver intensamente esse turbilhão de emoções, como um laboratório das experiências que virão, quando será preciso enfrentar ambientes heterogêneos e competitivos, driblar as adversidades e pôr a bola para frente todos os dias. "O esporte me ensinou a sentir os lugares, a perceber as pessoas, os conflitos e a montar estratégias, cumprir metas, transformar dificuldades em desafios", revela o ex-jogador Raí, que atuou dos 18 aos 35 anos na seleção brasileira, no São Paulo Futebol Clube e no Paris Saint-Germain, entre outros times. Ao pendurar as chuteiras, há 16 anos, Raí criou a Fundação Gol de Letra, pela qual já passaram 6 mil crianças e jovens. Os alunos são estimulados a praticar futebol e outras atividades físicas, têm reforço na leitura, na escrita e nas atividades culturais. "O futebol é instrumento de inclusão, uma forma muito concreta de propor e conquistar metas, mas sem perder o caráter de diversão. O jogo ajuda a 'amaciar' o mundo individualista, desenvolve companheirismo, cooperação, cumplicidade, persistência", diz Raí.

Na infância e na adolescência, esse corpo a corpo de treinos e partidas divertidas é um potente antídoto contra o excesso de tecnologia, que a cada dia torna mais crianças sedentárias. "O esporte ajuda a mudar isso, principalmente nas grandes cidades. Os pais, porém, têm que sair da inércia e tirar os filhos do tablet ou do videogame. Enquanto ficam quietos ali, não estão sendo preparados para lidar com a vida e com as pessoas", afirma Raí, que tem três filhas. Apenas a caçula, de 14 anos, joga futebol na escola.


Na vida do educador Luiz César Madureira, o futebol é mais que um esporte, é um norte. De família de classe média, ele aprendeu a respeitar as regras, a colocar seu corpo em movimento e a lidar com frustrações batendo bola nos campinhos de Ribeirão Pires, município da Grande São Paulo. Adolescente, foi jogar no time profissional da cidade e treinou muito para vencer os obstáculos e cumprir metas. Aos 18 anos, entrou na Faculdade de Educação Física e logo veio um desafio maior: trabalhar com adolescentes de Eldorado, bairro de Diadema, uma das regiões paulistanas mais populosas e violentas. "No primeiro dia, depois de atravessar becos e vielas, cheguei à quadra, onde havia 30 crianças e uma bola murcha. Eram meninos e meninas com todo tipo de trauma me olhando de um jeito assustador. Foi um teste para ver se eu ia ficar ou se saía correndo", lembra Madureira. "Resolvi colocar a bola para rolar e, assim, derrubei todas as barreiras entre nós. Em alguns minutos, fazíamos parte do mesmo jogo, estávamos em uma disputa entre iguais. Isso aconteceu há 13 anos, e continuo aqui", conta. Ele se tornou educador social e coordenador de esportes da Associação de Apoio à Criança em Risco (Acer), que atende por ano 2 mil crianças e jovens. "O futebol tem o poder de transformar pessoas e torná-las mais fortes para enfrentar a vida. Comigo foi assim, e tenho provas disso todos os dias. Jogando a gente se entende."